Ninguém nasce mulher, torna-se mulher
- Simone de Beauvoir –
A frase acima da escritora, filósofa existencialista e feminista que se refere aos seres humanos nascidos com sexo feminino, trata da relação entre gênero e sexo biológico. A frase em questão abre espaço a reflexão na idéia de que somente depois do nascimento questões culturais como o aprendizado das posturas, gestos e expressões entram em jogo para definir o gênero mulher, tendo a biologia como fator determinante pra isso… sendo assim não se nasce mulher, aprende-se a ser.
Eu cá com meus botões fiquei pensando: com as transexuais acontece o mesmo, pesquisas já comprovaram diferenças biológicas importantes que determinam a transexualidade, características fisio/morfológicas decisivas para o desenvolvimento da sexualidade e da identidade de gênero das transexuais estão semelhantes as do sexo feminino.
Quando o fui convidada a escrever esta coluna eu já me senti fortemente inclinada em falar sobre essa grande viagem que fazemos entre a descoberta, revelação e a afirmação do que somos….Como se dá essa viagem que parece nunca ter fim foi o tema que me dispus a falar…a frase da autora veio a calhar porque reafirma as condições que relevam o nosso sexo real em discordância ao biológico.
Algo dentro de nós, desde sempre nos leva perceber o mundo sob uma ótica feminina, não por acaso, a nossa base fisiológica feminina, embora esteja invisível, existe…
A descoberta
Vivemos por toda a vida um dilema entre o coração e a razão… mas se pensarmos bem foi o coração quem sempre esteve lá, muito antes de sabermos o quê, como e porque…
Na fase da inocência é o coração que rege e agimos muito mais pelo instinto…Eu lembro que uma vez minha mãe me falou que foi chamada ao colégio a pedido de uma professora, ela queria falar-lhe sobre mim, e disse a minha mãe, que repetiu para mim as suas palavras “ ele não é como os outros meninos” … e eu ainda nem sabia o que era ser como os outros… Eu não quero generalizar, mas me parece que na grande maioria das vezes não somos nós que nos descobrimos, nós apenas reagimos ao que nos espera na vida em sociedade…rejeitando os modelos de comportamento, postura e expressão impostos… Naquela altura em que a professora chamou a minha mãe eu já começara a minha viagem, instintivamente… eu não havia nascido mas já estava a tornar-me “mulher” sem ao menos saber o que isso significava.
Quando realidades inesperadas se insurgem tudo pode acontecer… Eu tive a sorte de nascer de uma mulher de grande coração, minha mãe também era pedagoga, e essa primeira revelação social, para ela não foi uma surpresa, assim me falou ”eu já lhe conhecia desde que você estava aqui dentro, muito antes da sua mestra meu filho”…. Ahhh as mães… nossos primeiros amores, nosso primeiro modelo de mulher e em quem provavelmente vamos inicialmente nos espelhar… mas isso é tudo que ninguém espera de nós.
Nem sempre essa notícia é recebida com naturalidade, o mais comum mesmo é causar estranheza, medo e decepção…é aí que essa viagem passa a ser solitária e carregada de culpa.
O sonho de princesa deixa de ser legítimo para tornar-se poético…o sofrimento carregado dentro das malas e arrastadas com muito esforço e cansaço se faz então poesia… Ninguém mais nos ensina o que gostaríamos, ninguém nos deixa brincar como queremos, achamos feio e sem graça o que temos de vestir e nos identificam de uma forma que não conseguimos compreender…Somos praticamente obrigadas a virarmos pelo avesso…e uma sensação de desconforto aprisionamento começa a se instalar.
Não é fácil crescer pelo lado avesso quando ainda nem sabemos ao certo o que exatamente se passa conosco… a única pista que temos são as retaliações constantes a nossa postural natural, indicando que algo está errado… é como se tivéssemos que aprender a representar uma personagem para satisfazer a convenções…e viver uma mentira! …. Não ande assim….não sente assim… esse brinquedo não é pra você… é no Super-Homem que você deve se espelhar e não na Mulher Maravilha… Eu adorava a Mulher Maravilha, não perdia um capítulo do famoso seriado estrelado pela Lynda Carter, certa vez fiquei tão frustrada por ter recebido a fantasia do Robin em vez da indumentária da Mulher Maravilha que minha mãe, percebendo a minha decepção, construiu com papelões os braceletes e a coroa dessa heroína… Outra coisa chata era cortar o cabelo…eu não entendia porque não podia tê-los maiores, meu pai me levava a um barbeiro no centro da cidade que me fazia uma corte de militar, aquilo era um martírio pra mim… Em casa minha mãe tinha de esconder maquiagens e eu vivia calçando seus sapatos… tudo só me levava a ela, a minha mãe…era com ela que eu sentia uma enorme empatia… Na vida social estava sempre no grupo das meninas… era como se eu não soubesse ser um menino e sinceramente não tinha a menor pretensão de aprender!
Mas se eu que havia nascido numa família mais esclarecida, sofri com primos, tios, irmãos que não aceitavam bem o que se passava comigo…imagine quem nasce numa família mais fechada, dura e por vezes agressiva. Ter uma vida escolar marcada por episódios de discriminação e violência psicológica e ainda não ter amor dentro de casa é o motivo que muitas transexuais precisam para cortar relações com quem jamais deveria.
Ver primas e colegas tornando-se mulheres e você vendo seu corpo se masculinizar, com pelos, voz, é frustrante… a esta altura eu tinha até medo de me deixar ir pelo sonho de ser como as outras mulheres… na verdade também tive a minha fase de transfobia, quando as transexuais que eu via estavam semi-nuas a noite nas ruas… Seria esse o meu destino se me deixasse viver como toda as células do meu corpo e o meu coração assim desejava em segredo?
A transexualidade não é uma escolha mas está em suas mãos se aceitar e começar uma luta contra tudo e contra todos pela afirmação da sua real identidade ou levantar a bandeira da paz com a família e a sociedade as custas de seus anseios, sonhos e necessidades pessoais mais básicos….e sua maior angústia é saber que você só tem a chance de uma vida para tentar… Os gatos tem sete vidas…e aí você se pergunta…”você é um homem ou um rato?” Sim tem de ser muito homem para ter coragem de se encarar no espelho disposto a se ver revelar-se em quem vôce realmente é…porque é fundamental perceber que antes você ser, você já se sente como travesti ou transexual.
A transformação…Não, a readequação!!!
Silicone, hormônios, maquiagem, esmaltes para unhas, roupas… toda moda, ciência, arte e tecnologia ao nosso favor…começando pelo jeito mais óbvio, e também mais fácil…que é tentar dissimular aquilo que de masculino temos em nós… Eliminar os pelos do corpo, fazer as sobrancelhas, deixar unhas e cabelos crescerem…
Voltando a falar de forma pessoal, muito embora eu creia que aconteça com muitas, é aquele momento em que você se decide… “ chega de viver assim, agora é minha vez!” … Para que isso aconteça, uma série de fatores e situações matura até culminar nessa decisão… talvez a mais importante é o momento em que encontramos alguém que nos causa enorme empatia e inspiração…o primeiro encontro com outra travesti… não aqueles que te causaram transfobia e desencontro…estes não… mas o encontro que eu me refiro na verdade nos causa uma espécie de deslumbramento. Isso tem muito a ver com o modelo de mulher que admiramos…discretas, chiques, sexys, ousadas... ou mesmo vulgares. Da mesma forma que existem mulheres com diferentes posturas assim serão as futuras travestis e transexuais…cada uma no seu estilo, no seu temperamento.
A primeira fase é a da “montaria”… uma gíria que vem da idéia de construir, de montar…pelo uso do artifício...é a fase das roupas, acessórios, perucas, maquiagem… e somente depois numa necessidade maior de se ver mais mulher ao espelho porém sem a “montaria” é que começa uma fase mais invasiva dessa transmutação…Entram em cena dois personagens fundamentais capazes de operar verdadeiros milagres da morfologia: os hormônios e o silicone industrial… e com segundo deles entra também um terceiro personagem: a bombadeira; a artista de bioplastia clandestina… Bombadeira vem da idéia de inflar, de “bombar” , caberá à sua experiência e maestria a construção de formas físicas que só existem na imagem poética, no desejo abafado daquilo que a natureza não lhe deu.
Quanto mais jovem se decidir e encontrar com esses dois personagens, que serão três, melhores serão os resultados obtidos… os hormônios transformam de dentro pra fora, sem eles não há silicone, nem bombadeira que dê um bom jeito…o silicone vai onde os hormônios não chegam como um acabamento que abrilhanta mais ainda os seus efeitos…Após passar por estes dois processos certamente já será verdadeiramente travesti na pessoa física.
A afirmação dessa identidade
A antiga lagarta que irrompe o apertado casulo e sái borboleta mal espera pelo momento de voar.
Se por um lado foi difícil suportar pressões e preconceitos, quebrar barreiras, superar obstáculos para ir em busca de si mesma e finalmente enxergar as provas no espelho, por um outro mais dificuldades ainda estarão a espera no caminho da tentativa de afirmação dessa identidade forjada, porém absolutamente legítima.
O quando foi custoso para os homossexuais se inserirem como parte da sociedade compreendidos e respeitados e tendo os seus direitos resguardados, imaginem para aquele que transcende e comete “pecado” para com o seu próprio corpo.
Eu usei a palavra “pecado” porque muitas das barreiras criadas para a diversidade de gêneros sexuais na vida em sociedade são de cunho religioso... a Santa Igreja Católica é responsável pela mensagem absorvida maciçamente no seio da sociedade de que Deus criou o homem a sua imagem e semelhança…Criou o Adão, e da costela de Adão criou Eva, a muher…e tudo que fugir a esse conceito seria pecado.
Mas voltando para o vôo da borboleta… provar que sou quem eu sinto ser, não é tão simples quando parecia quando eu imaginava que depois da minha transformação eu pudesse talvez estar uma mulher fisicamente inquestionável… Ora, por mais naturais que os resultados desse processo tenham logrado bons resultados, o fato de não ter nascido dentro de uma fisiologia cem por cento feminina já muda tudo… A vida que eu tive antes, e quem eu fui obrigado ser fisicamente são elementos fundamentais que irão marcar essa sutil diferença.
Nesse vôo de liberdade haverão sempre momentos de tempestade e mau tempo…haverá sempre quem te reconheça pelo seu passado nos traços do teu corpo ou na sua atitude…é quando te denunciam pra você mesmo com um “ você não é mulher” ou um “ mas é um homem” que essa afirmação pode vir a se tornar um desejo mais forte ainda de auto-afirmação.
Agora é o momento da busca pela perfeição… na tentativa de melhorar o que ainda parece ser um traço do passado masculino, muitas embarcam numa viagem que por vezes ultrapassa as fronteiras do país… Técnicas mais aprimoradas e com o respaldo científico requerem um poder aquisitivo que aporte e possibilite a concretização desse sonho.
O mercado de trabalho que melhor remunera transexuais com ou sem preparo cultural é profissionalização dentro do universo das perversidades sexuais… A fantasia masculina pelo corpo da mulher perfeita com algo a mais, diga-se o sexo de homem, é o bilhete comprado para mais uma etapa dessa viagem.
“A produção pornô, ao abrir novas áreas de trabalho facilitando a “tolerância” para com elas através da beleza de sua aparência, também reforça o preconceito ao associá-las ao universo da representação obscena. Se o status de estrela pornô enfraquece a relação imaginária com a criminalidade de rua, reforça a estigmatização pelo viés da associação com a pornografia. Ao encarnarem para o imaginário social as estigmatizadas associações entre perversidade sexual, delinquência, espetacularização dos prazeres eróticos e pornografia num único corpo conscientemente forjado, esta “intolerável ambiguidade” paga o terrível preço de conviver com o fascínio carregado de ódio, a desqualificação de seus desejos e a inferiorização de seus gozos.”
- Jorge Leite Júnior- para PUC- SP-
Talvez esteja nas afirmações desse trecho da tese do formando Jorge Leite Júnior uma indicação clara de que, nesse caminho se por um lado somos as estrelas do espetáculo mas encarnando os papél de vilãs….em resposta a isso temos todo o desprezo social recebido ao fim, junto com o cachê.
Em suas buscas pessoais muitas surgiram pelo mundo mudando a história dos transgêneros dentro das sociedades por mais conservadoras que fossem. Nessa busca pela perfeição plástica muitas transexuais atingiram um alto nível da imitação e semelhança da representação física da beleza da mulher.
A exemplo da Roberta Close com a sua espantosa beleza inaudita pela primeira vez elevou a comunidade das transexuais ao “status de mulher”, acionou as mídias, derrubou paradigmas e preconceitos e mudou a história das transexuais brasileiras… Ela se tornou um fenômeno nacional e arremessou mentalidades para a reflexão, trouxe à luz do dia no seio da sociedade um tema, antes tão rejeitado, apenas por ser assombrosamente bela.
Essa busca pessoal leva muitas travestis para os países do continente europeu, o chamado Velho Mundo não só recebe como abre as portas para um mercado de trabalho generoso para os transgêneros de todo o mundo…França, Itália, Espanha, Suíça e outros países da Europa estão repletos de imigrantes travestis que vão em busca de melhores condições financeiras para concretizar seu maior objetivo, que é viver com a dignidade de finalmente ser reconhecida, aceita, respeitada…e amada como ELA.
- Alessandra Mendonça-